Machismo, misoginia, racismo, abandono, saúde mental, direito homoafetivo, separação e as controvérsias dos relacionamentos contemporâneos foram temas abordados em alguns dos melhores filmes de 2019. Discussões caras ao Direito das Famílias e que, a partir da conexão entre Direito e Arte, contribuem para uma análise ampla de questões urgentes em nossa sociedade.

Convidamos especialistas do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM para falar sobre cinco dos filmes mais comentados da temporada e a pertinência de cada um sob a ótica da cena jurídica atual.

 

“A Vida Invisível” olha para o passado e reflete o presente

Dirigido por Karim Aïnouz, o brasileiro “A Vida Invisível” narra o desencontro entre duas irmãs quando uma delas, Guida (Julia Stockler), decide fugir de casa para viver um romance e escapar do autoritarismo de seu pai. Enquanto isso, Eurídice (Carol Duarte) luta para não renunciar à carreira de pianista após se submeter a um casamento de aparências.

Baseado no livro de Martha Batalha, “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, o longa se passa no Brasil da década de 1940, retrata a submissão da mulher naquela sociedade e reflete o machismo e a misoginia nos dias de hoje. Para a advogada e professora Fernanda Barretto, presidente da Comissão de Direito de Família e Arte do IBDFAM, “A Vida Invisível” traz um lirismo pungente e belo que o fez, não por acaso, conquistar o prêmio na mostra paralela Um Certo Olhar, do Festival de Cannes (França).

“O melodrama se utiliza de linguagem atual e de fotografia em tons saturados para retratar a trágica trama que tem como eixo central a separação imposta, silenciosamente, às duas irmãs, em função da percepção do pai de ambas e do marido de Eurídice de que a personalidade de Guida, mulher libertária e à frente do seu tempo, poderia influenciar negativamente a irmã e desviá-la do destino inexorável daquelas que eram tidas como ‘moças de família’: casar, ter filhos e viver apenas em função da família”, analisa Fernanda.

Segundo a advogada, o longa dialoga com o Direito das Famílias “na medida em que retrata, com muita clareza, como o patriarcado atua, ainda que invisivelmente, na tentativa de controlar e condicionar as potencialidades e as escolhas das mulheres”.

“Ademais, o filme retrata as violências psicológica e sexual de um casamento sem amor, mas ressalta também a beleza e a força da fraternidade e do afeto entre as duas irmãs, que continuaram psicologicamente ligadas e tendo papel importante na vida uma da outra, mesmo forçadas à distância física”, observa Fernanda.

“A Vida Invisível” está em cartaz nos cinemas.

 

“Bacurau”: uma resposta ao preconceito

Em sua palestra no XII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões – Famílias e Vulnerabilidades, promovido pelo IBDFAM em outubro deste ano, a advogada e professora Luciana Brasileiro, membro do IBDFAM, falou sobre “Bacurau”, dirigido por seus conterrâneos, os cineastas recifenses Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O longa venceu o Prêmio do Júri, uma das categorias mais importantes no Festival de Cannes, empatado com “Lés Miserables”.

Ambientada em um futuro não tão distópico, a história nos apresenta Bacurau, uma fictícia cidade no sertão nordestino, que, do dia para a noite, sai do mapa. À medida em que começam a perceber a presença de drones sobrevoando a cidade e misteriosos forasteiros surgem no local, os moradores passam a ser atacados e se dedicam a descobrir quem é o inimigo.

Para Luciana Brasileiro, o filme trata, sobretudo, de racismo e é uma bela resposta ao preconceito. “Gringos vão a Bacurau para extravasar os seus problemas – um deles, inclusive, para ‘compensar o fato de não ter conseguido matar a ex-esposa por ocasião do divórcio’. ‘Bacurau’ expõe a violência estrutural imposta aos nordestinos e questiona como um povo não consegue se perceber dentro de suas próprias raízes.”

“O que os americanos não esperavam, era encontrar um espaço laico, democrático, onde a coletividade, não obstante suas individualidades, se coloca de forma extremamente unida. Em Bacurau não há fórum, não há praça nem Igreja. Suas principais fortalezas são a escola e o museu – onde estão guardadas as armas da cidade”, observa Luciana.

Para a advogada e professora, o filme traz temas urgentes em Direito das Famílias, evidenciando a luta das populações vulneráveis, e reúne simbolismos que dão um recado aos tempos atuais. “As grandes lideranças (em Bacurau) são professores, são pessoas de todas as cores e gêneros.”

“A cidade é protegida, principalmente, por uma rede de WhatsApp, que tem como interlocutora uma transexual, que vive uma relação simultânea com dois homens, responsável por vigiar a cidade; e uma travesti, que é chamada para a luta, quando a necessidade de pegar em armas surge – ela veste, em alusão ao cangaço, uma poderosa roupa feminina para defender seu povo. As relações sexuais não são um tabu, e as mulheres que representam forte liderança na comunidade são lésbicas.”

“Em Bacurau, a maior arma é a união das pessoas, em suas diferenças, com o propósito de se defender e proteger sua memória. As pessoas não se sujeitam à manipulação do voto e reagem ao sistema político atual. Quem nasce em Bacurau é gente – que sabe se defender, e que sabe respeitar as diferenças”, assinala Luciana.

“Bacurau” está em cartaz nos cinemas e disponível para compra e aluguel no YouTube, no Google Play e no Now.

 

“História de um Casamento” mostra perda de foco em divórcios litigiosos

Charlie (Adam Driver) e Nicole (Scarlett Johansson) estão enfrentando uma dolorosa separação. Eles concordam em não contratar advogados, mas, insatisfeita com os últimos rumos do relacionamento, Nicole decide acionar Nora Fanshaw (Laura Dern), especialista em divórcios. O que prometia ser um processo sem grandes arroubos, torna-se uma verdadeira batalha pela convivência com o filho do ex-casal, potencializada por rancores e sentimentos ainda não superados entre os dois.

Dirigido por Noah Baumbach, “História de um Casamento” traduz de maneira cortante, segundo Fernanda Barretto, o processo de distanciamento emocional que culmina em divórcio litigioso. “O filme, que tem nítida inspiração no clássico do diretor sueco Ingmar Bergman, ‘Cenas de Um Casamento’, revela, num primeiro momento, as afinidades que uniram o casal, e vai descortinando, com triste precisão, o processo de corrosão, movido à quebra de confiança e isolamento, que torna o amor e a amizade em desunião e deterioração”, avalia Fernanda.

Ela diz que a temática, por si só, está impregnada no cotidiano no Direito das Famílias. “O que o torna ainda mais indispensável para quem milita nessa seara tão delicada e particular do Direito é o destaque que dá ao imbróglio jurídico que a disputa pela guarda do filho enseja, bem como para atuação dos advogados do casal – protagonistas do tom cada vez mais bélico que o processo de desfazimento do casamento vai assumindo, no decorrer da projeção.”

“É muito vigorosa e honesta a forma como o diretor retrata em que medida as batalhas judiciais em derredor das questões familiares muitas vezes perdem o foco da real solução dos problemas, intensificando os conflitos, razão pela qual não devem ser conduzidas pela mesma lógica adversarial de ‘perda-ganho’ aplicada a outras demandas judiciais”, comenta Fernanda.

“História de um Casamento” está disponível na Netflix.

 

Protagonista de “Coringa” encontra na psicopatia o palco que lhe fora negado

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) trabalha como palhaço e lida com um transtorno mental que o faz rir compulsivamente quando está nervoso. Sua instabilidade emocional, negligenciada pelo Estado e pela sociedade, associada às agressões que sofre no dia a dia, o transformam em um assassino em série, incitando, sob a alcunha de Coringa, um movimento popular contra a elite de Gotham City.

O filme de Todd Phillips é um dos mais comentados e polêmicos do ano, diz Fernanda Barretto. “Interpretado com brilho assombroso por Joaquim Phoenix, Fleck é um comediante que ganha a vida como palhaço, mas sonha em fazer sucesso com espetáculos de stand-up comedy. Contudo, esbarra na dificuldade de lidar com a própria doença mental e, sobretudo, na forma cruel e negligente como o Estado e a sociedade, em geral, lidam com a loucura”, observa a advogada.

Para Fernanda, ambientar o filme nos EUA da década de 1980, portanto na Era Reagan, tem nítido intuito de retratar como a redução do Estado, promovida naquele período, impactou negativamente nas políticas de saúde pública. “O filme foca na progressiva transformação dessa figura excluída socialmente em um dos maiores vilões das HQs, que encontra na violência crua, em flerte profundo com a psicopatia, a sua distorcida forma de ocupar o centro do palco que lhe fora negado.”

“Além das interfaces com os direitos da personalidade e com a temática da capacidade civil, o filme se conecta ao Direito das Famílias na medida em que dá considerável destaque à complexa relação do Coringa com sua mãe, além de trazer uma passagem importante sobre a possível origem paterna do protagonista”, assinala Fernanda.

“Coringa” está em cartaz nos cinemas.

 

“Carta para Além dos Muros” narra a descoberta do HIV no Brasil

O documentário “Carta para Além dos Muros”, de André Canto, narra a descoberta do vírus HIV e a epidemia de AIDS nos anos 1980, o que interrompeu os tempos de amor livre da década anterior. Um jovem anônimo, que recebe seu diagnóstico em 2019, ajuda a traçar um panorama dos avanços no tratamento, mas também do preconceito que ainda incide sobre a população LGBTI.

Quando surgiu, a AIDS tornou-se vulgarmente conhecida como “peste gay”, por ter se disseminado, primeiramente, entre homossexuais. Segundo Priscila Morégola, vice-presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM, a população LGBTI sofre redobrado preconceito desde o aparecimento do HIV e da AIDS.

“No início da epidemia do HIV/AIDS, acreditava-se que somente as pessoas LGBTI eram passíveis de adquirirem a doença. No entanto, com o passar do tempo, verificou-se que toda a população, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero, estava sujeita a contrair o HIV e ter AIDS”, avalia Priscila.

Ela observa que, ainda hoje, o diagnóstico positivo de HIV é considerado uma sentença de morte por pura falta de informação. “Com o tratamento adequado, a carga viral fica indetectável no organismo e a pessoa que vive com o HIV não mais o transmite”, explica a advogada. “O preconceito é tão grande que muitas pessoas deixam de fazer o teste e procurar os centros de saúde por saber que serão estigmatizadas e sofrerão preconceito.”

Priscila critica a ausência de campanhas que informem como pode ser feita a prevenção (PREP) e a profilaxia (PEP) relacionada à exposição ao vírus, além do tratamento com terapia antirretroviral. O longa de André Canto retrata tais avanços, contrapondo-os ao preconceito, à ignorância e aos retrocessos que ainda circundam o assunto.

Em maio, o presidente Jair Bolsonaro modificou a estrutura do Ministério da Saúde, transformando o Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), HIV, AIDS e Hepatites Virais em Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, mudança que recebeu críticas de setores da saúde. Segundo dados do Ministério da Saúde, cerca de 900 mil pessoas vivem com HIV no Brasil, sendo que 135 mil não sabem que são portadores do vírus, o que potencializa a chance de desenvolver AIDS.

“No Brasil, ainda estamos rastejando em questão da saúde e direitos humanos da população LGBTI, que sofre todos os dias com a violência e o preconceito. Somos o País que mais mata LGBTI no mundo. Estamos vivendo uma época de retrocesso em termos de direitos e garantias individuais”, finaliza Priscila.

“Carta para Além dos Muros” está disponível na Netflix.

 

FONTE: IBDFAM