O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM recebe até 30 de agosto propostas de enunciados para o XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, que será realizado em outubro. Nesta semana, o advogado Ricardo Calderón, membro da Comissão de Enunciados e diretor nacional do IBDFAM, comenta algumas das diretrizes já aprovadas.
Ao todo, o IBDFAM já conta com 36 enunciados, que servem para a criação doutrinária e como referência jurisprudencial no Direito das Famílias e Sucessões. Muitos deles já foram citados e usados como base para importantes decisões de tribunais superiores e deram origem a entendimentos já consolidados no ordenamento jurídico brasileiro.
“As famílias brasileiras estão em um processo contínuo de transformação que nem sempre é acompanhado por alterações legislativas contemporâneas a tais mudanças. Para alguns, o quadro atual seria de ‘uma mudança que não para de mudar’, situação que incentiva a uma constante reinterpretação do nosso sistema jurídico”, comenta Ricardo Calderón.
Segundo o advogado, o eventual descompasso entre uma interpretação da lei e o novo perfil dos fatos leva à necessidade de alguma adaptação. “Os enunciados interpretativos exercem um importante papel nesta harmonização, contribuindo para uma tradução das leis que corresponda às exigências do nosso tempo. Nesse trilhar, são extremamente ricos os contributos dos especialistas nesse processo hermenêutico-construtivo do direito das famílias brasileiro”, frisa.
Confira, a seguir, a íntegra dos comentários de Ricardo Calderón sobre os Enunciados 10, 11, 12, 13, 14 e 15 do IBDFAM, que tratam de abandono afetivo de idosos, custódia compartilhada de animal de estimação, registro de filhos de casais homoafetivos, adoção intuitu personae, fixação de pensão alimentícia e sucessão e regime bens.
Enunciado 10 – É cabível o reconhecimento do abandono afetivo em relação aos ascendentes idosos.
A temática do abandono afetivo teve um impulsionamento no Direito brasileiro, principalmente após a decisão do Superior Tribunal de Justiça – STJ em 2012, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em sede do REsp 1.159.242/SP. A partir de então, diversas decisões foram proferidas em casos de abandono afetivo que chegaram até o Poder Judiciário, e aclararam diversas questões correlatas a esse tema. Doutrinariamente, um dos primeiros a argumentar na defesa desta tese foi Rodrigo da Cunha Pereira.
Em um segundo momento, passou-se a aventar sobre a possibilidade do chamado abandono afetivo inverso, ou seja, o questionamento quanto ao abandono dos pais idosos pelos seus filhos. A necessidade de tutela do cuidado com os idosos vem sendo cada vez mais suscitada (na doutrina brasileira, o cuidado é bem delineado por, dentre outros, Tânia da Silva Pereira). Essas matérias vêm ganhando relevância no âmbito doutrinário e aparecem, ainda que de forma embrionária, em pioneiras decisões judiciais.
A preocupação com os idosos vem reforçada com a aprovação do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), o qual lança luz sobre a necessária proteção e atenção em relação às pessoas idosas. Nessa perspectiva, uma leitura do Direito brasileiro a partir da Constituição Federal, do Código Civil e do Estatuto do Idoso tem fomentado a complexa situação do abandono afetivo dos idosos.
Imerso nesta perspectiva é que se encontra o referido enunciado. Ainda se trata de um tema relativamente recente, o qual pode ser impactado pelo crescente número de idosos na sociedade brasileira, conforme demonstram os últimos dados censitários. Muitos desses idosos sofrem com uma vulnerabilidade social, financeira e até afetiva, o que justifica a preocupação com o chamado abandono afetivo inverso, externada no enunciado.
Enunciado 11 – Na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal.
Outro tema inovador e que vem ganhando a atenção dos juristas é o tratamento jurídico dos animais de estimação, especialmente quando este envolve um impasse entre as partes em um processo judicial. Em muitos desenlaces afetivos as partes divergem sobre a custódia do animal de estimação comum. Algumas decisões vêm entendendo que o juiz de família também pode deliberar sobre o destino deste animal (nesse sentido: STJ, 4ª, REsp 1.713.167/SP, com relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, que tratou da convivência – “visitas” – com um animal de estimação).
Essas precursoras decisões judiciais são exemplos de uma preocupação crescente com a nova qualificação jurídica dos animais, para que não sejam mais considerados como meras coisas, mas sim como “seres sencientes”. A chamada “família multiespécie” vem ganhando destaque, conforme demonstra a matéria de capa da 43ª Revista Informativa do IBDFAM. Doutrinariamente, José Fernando Simão e Patrícia Corrêa Sanches são alguns dos que estão a refletir sobre as possíveis consequências jurídicas que podem decorrer desta nova configuração jurídica dos animais.
A busca por uma adequada tutela jurídica dos animais de estimação é outro tema contemporâneo que não possui legislação específica, de modo que sobressai a relevância da doutrina e dos enunciados interpretativos no tratamento jurídico dessa questão.
Enunciado 12 – É possível o registro de nascimento dos filhos de casais homoafetivos, havidos de reprodução assistida, diretamente no Cartório do Registro Civil.
Por muito tempo, os casais homoafetivos enfrentaram dificuldades no registro dos seus filhos, muitas vezes gerados por reprodução assistida. Grande parte das normas registrais estavam (e por vezes ainda estão) atreladas a um paradigma heteroafetivo, ou seja, fazem remissão a um pai e uma mãe, referindo a uma distinção de gênero na definição dos ascendentes. Esta configuração trouxe diversas dificuldades para os pares do mesmo sexo.
Como sabido, a união homoafetiva passou a ter seus direitos reconhecidos a partir do paradigmático julgamento do Supremo Tribunal Federal – STF (ADPF 132 e ADI 4.277), que declarou a possibilidade dessas uniões, com todos os seus consectários. Posteriormente, o STJ permitiu o casamento homoafetivo, com o Conselho Nacional de Justiça – CNJ vindo a sacramentar a viabilidade inclusive para fins registrais (Resolução 175/2013).
Na esteira disso, outro aspecto que passou a ser objeto de pretensão foi a facilitação no registro dos filhos advindos de relacionamentos homoafetivos, grande parte havido por reprodução assistida. Esses casos encontravam uma barreira muito grande no momento da obtenção do registro civil, o que fazia com que, não raro, os pais fossem obrigados a buscar a tutela do Poder Judiciário para conseguir um simples registro de nascimento dos seus filhos. Essa situação gerava uma dificuldade prática enorme, totalmente injustificável e que prejudicava essas crianças.
Este Enunciado 12 externa o entendimento que o reconhecimento dos direitos homoafetivos envolve diversas esferas, inclusive a registral e filial. Dentre elas, ressalta a possibilidade de registro direto no cartório de registro civil dos filhos havidos em reprodução assistida, sem a necessidade de uma ação judicial, mesmo de pais ou mães homoafetivos.
Para parte da doutrina, a qual me filio, uma hermenêutica em harmonia com o reconhecimento dos direitos dos casais homoafetivos não deixa dúvidas quanto ao direito de realizar o registro de seus filhos diretamente no Cartório de Registro das Pessoas Naturais – em oportunidade similar a que é ofertada aos casais heteroafetivos.
Esse pensamento foi, inclusive, corroborado pelo Provimento 63 do CNJ (complementado pelo Provimento 83), que a partir de 2017 passou a prever expressamente a possibilidade de registro diretamente no cartório de registro civil dos filhos oriundos de reprodução assistida, mesmo de pares homoafetivos, vedada qualquer discriminação ou preconceito. Sobre o tema já me manifestei em artigo que está disponível no site do IBDFAM.
Um outro desafio ainda mais recente nessa temática envolve as denominadas reproduções assistidas caseiras, ou seja, quando há um procedimento informal, sem acompanhamento médico, de alguma técnica de reprodução assistida. É crescente o número de casos desta estirpe que estão batendo à porta do Poder Judiciário, ainda que sem legislação expressa a respeito. O filho havido desse procedimento caseiro tem encontrado dificuldades registrais, sendo este um tema ainda em aberto e que pode, quem sabe, também ser objeto de algum futuro enunciado.
Enunciado 13 – Na hipótese de adoção intuitu personae de criança e de adolescente, os pais biológicos podem eleger os adotantes.
A temática da adoção envolve muitas discussões e dificuldades de diversas ordens, o que gera uma série de reflexões quanto a alguma possível melhoria do sistema. Tanto é que o próprio IBDFAM apresentou um projeto de lei que visa tratar especificamente do tema, o Estatuto da Adoção, em discussão no Congresso Nacional sob o número PLS 394/2017, além de lançar a campanha Crianças Invisíveis, que busca jogar luz sobre as crianças em abrigos.
Uma das medidas que usualmente é objeto de sugestão (e polêmicas) é a chamada adoção intuitu personae, pelo qual os pais biológicos da criança indicariam quem seriam os adotantes. A questão é de grande divergência, com posições fundamentadas em ambos os sentidos, ambas destacando as vantagens, riscos e desvantagens de cada alternativa. O enunciado aprovado se manifesta pela possibilidade da adoção intuito personae, de modo a incentivar a sua análise em determinados casos concretos.
Obviamente que esse enunciado deve ser interpretado em harmonia com o princípio do melhor interesse e o da proteção integral, e desde que a realidade fática subjacente recomende a sua aplicação. Alguns autores estão defendendo um outro olhar sobre diversos aspectos envoltos no processo de adoção, como as instigantes reflexões dos juízes Fernando Moreira e Sérgio Kreuz.
Esse é um tema que segue na ordem do dia, ainda com algum dissenso doutrinário, mas sobre o qual o referido enunciado sugere uma interpretação possível a qual pode, de algum modo, contribuir neste debate.
Enunciado 14 – Salvo expressa disposição em contrário, os alimentos fixados ad valorem incidem sobre todos os rendimentos percebidos pelo alimentante que possua natureza remuneratória, inclusive um terço constitucional de férias, 13º salário, participação nos lucros e horas extras.
Esse enunciado sugere uma interpretação quanto à base de incidência da verba alimentar quando ela é fixada em percentual sobre os rendimentos do alimentante. Há uma antiga discussão sobre a incidência (ou não) desta verba sobre o terço de férias, 13º salário, participação nos lucros e horas extras. Há decisões judiciais pretéritas tanto em um sentido quanto em outro.
O Enunciado 14 sugere que, nesses casos, os alimentos também devem incidir sobre tais verbas, propondo uma interpretação extensiva da base de incidência dos alimentos. O que se percebe é que, de certo modo, a jurisprudência e a doutrina paulatinamente caminham no sentido proposto pelo enunciado.
A respeito do 13º salário e o terço constitucional de férias o STJ, por meio do Tema Repetitivo 192, entendeu pela incidência sobre esses valores. Quanto à incidência sobre os valores referentes a horas extras, recentemente a 3ª Turma do STJ decidiu que os valores de horas extras devem integrar a base de cálculo da verba alimentar (REsp 1.741.716/SP).
Há ainda uma certa resistência quanto à participação nos lucros e, também em recente decisão, o STJ afirmou que a incidência da verba alimentar sobre os valores de participação nos lucros e resultados não deve ser automática, devendo o juiz fazer uma análise das circunstâncias especiais e das necessidades vitais do credor da pensão antes da deliberação. A base legal suscitada foi o art. 1.694 do CC: “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”.
As diversas nuances envoltas no tema dos alimentos são bem tratadas nas obras de Maria Berenice Dias e Rolf Madaleno, que podem auxiliar na compreensão do que o texto aprovado está a indicar.
Como visto, o Enunciado propõe uma interpretação ampla da incidência da verba alimentar. Os tribunais têm caminhado no sentido indicado, o que comprova a existência de um saudável diálogo entre doutrina, enunciados e jurisprudência.
Enunciado 15 – Ainda que casado sob o regime da separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário e concorre com os descendentes.
Esse enunciado visa aclarar que a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes e a sua qualificação como herdeiro necessário ocorre mesmo no regime da separação convencional de bens. Foi aprovado em um contexto em que o STJ passou a proferir algumas decisões em um sentido divergente, ou seja, a dizer que no regime da separação convencional de bens o cônjuge supérstite não seria herdeiro necessário e não concorreria com os descendentes na herança.
Assim, a partir do momento que o STJ adotou esse posicionamento divergente, aplicando a exceção do artigo 1.829, I, do Código Civil ao regime da separação convencional de bens, emergiu a aprovação deste enunciado. Um dos grandes defensores desta tese foi o saudoso Zeno Veloso, mestre de todos nós, que a defendia com veemência, ao lado da professora Giselda Hironaka.
Posteriormente, o próprio STJ pacificou a jurisprudência nesse sentido, adotando o teor do Enunciado 15, na decisão da Segunda Seção proferida no REsp 1.382.170, com relatoria do ministro João Otávio de Noronha. As obras de Luiz Paulo Viera de Carvalho e Flávio Tartuce bem descrevem esse percurso e as projeções atuais desse entendimento.
Os diversos posicionamentos que decorrem do nosso controvertido Direito Sucessório são um bom exemplo de como os enunciados interpretativos podem servir de farol, mesmo em momentos de ausência de consenso jurisprudencial sobre determinado tema.
Sintonia com Direito das Famílias e Sucessões
Segundo Ricardo Calderón, os enunciados do IBDFAM estão em sintonia com as grandes discussões do Direito das Famílias e Sucessões. Visam contribuir, por meio da visão de especialistas sobre o tema, nesse debate constante. “O momento atual é de uma realidade complexa, fluida, instável e fragmentada, como diz Zygmunt Bauman. Este cenário exige um Direito que se adapte a esse contexto peculiar”, diz.
“Esse direito, portanto, deve ser dúctil, flexível, apto a se adaptar às demandas do presente e também do futuro. Conforme orienta Stefano Rodotá, o Direito de Família Contemporâneo deve ser sensível às exigências afetivas do presente, evitando fazer um papel similar ao ‘da água sobre o fogo’ quando venha a regular essas sensíveis esferas da vida.”
De acordo com o advogado, o Direito das Famílias tem se tornado, nos últimos anos, um Direito jurisprudencial, já que grande parte das atuais possibilidades jurídicas estão retratadas por decisões jurisprudenciais, ainda que sem previsão legal expressa a respeito do tema.
“O Direito das Famílias tem demonstrado que possui uma hermenêutica jurídica própria, sendo este um ponto central a ser observado por quem atua nessa alvissareira área do direito. Assim, tem se mostrado cada vez mais relevantes as contribuições hermenêuticas lançadas pelos especialistas da área, tais quais as constantes dos já consagrados enunciados interpretativos do IBDFAM”, conclui Calderón.
Novos enunciados serão anunciados no XIII Congresso do IBDFAM
O envio das propostas de enunciados à coordenação deverá ser realizado até 30 de agosto. A sugestão deve ser feita em frases curtas, com breve justificativa apontando a referência normativa em questão. O envio deve ser feito pelo site oficial e também pelo e-mail enunciados@ibdfam.org.br.
De 31 de agosto a 30 de setembro, a Comissão de Enunciados do IBDFAM vai sistematizar as propostas recebidas. O período de votação será de 4 a 11 de outubro. A divulgação das frases aprovadas será durante o XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões do IBDFAM.
O evento será realizado nos dias 27, 28 e 29 de outubro. Por conta da pandemia da Covid-19, a programação será on-line. O tema “Prospecções sobre o presente e o futuro” perpassa todas as palestras, cuja relação já foi divulgada. O evento contará com uma homenagem ao jurista Zeno Veloso.