O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) foi admitido como amicus curiae, no Supremo Tribunal Federal (STF), em ação que questiona a proibição de doação de sangue por homossexuais. Em seu despacho, o ministro Edson Fachin, relator, destacou a importância do IBDFAM “como força representativa nos cenários nacional e internacional, e como instrumento de intervenção político-científica, ajustado aos interesses da família e aos direitos de exercício da cidadania”.
E completou: “Demonstra, dessa forma, possuir a necessária representatividade temática material e espacial, mostrando-se legítima sua intervenção na condição de amicus curiae em virtude da possibilidade de contribuir de forma relevante, direta e imediata no tema em pauta.”
O Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5543) no STF contra normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que consideram homens homossexuais temporariamente inaptos para a doação de sangue pelo período de 12 meses a partir da última relação sexual. Para o partido, na prática, tais normas impedem que homossexuais doem sangue de forma permanente, situação que revela “absurdo tratamento discriminatório por parte do Poder Público em função da orientação sexual”.
Na ADI, o partido afirma que a Portaria 158/2016, do Ministério da Saúde, e o artigo 25, inciso XXX, alínea “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 34/2014, da Anvisa, ofendem a dignidade dos envolvidos e retira-lhes a possibilidade de exercer a solidariedade humana. “Se não bastasse, há que se destacar a atual – e enorme – carência dos bancos de sangue brasileiros. Segundo recentes levantamentos, estima-se que, em função das normas ora impugnadas – proibição de doação de sangue por homens homossexuais –, 19 milhões de litros de sangue deixam de ser doados anualmente”, enfatiza o PSB.
A ADI apresenta o contexto histórico do qual surgiu a proibição de doação de sangue por homossexuais, citando que o vírus HIV, causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), manifestou-se pela primeira vez nos anos de 1977 e 1978 nos Estados Unidos, Haiti e África Central, multiplicando-se de forma descontrolada nos anos que se seguiram. “Assim, em virtude do temor e desconhecimento científico acerca da Aids, passou-se a proibir as doações sanguíneas advindas de certos grupos sociais, dentre os quais se inseriam os homens homossexuais. E foi seguindo esse contexto mundial que o Ministério da Saúde do Brasil editou a Portaria 1366, no ano de 1993, proibindo pela primeira vez que homens homossexuais doassem sangue no país”.
O PSB lembra que, desde o ano 2000, o debate sobre o fim da proibição de doação de sangue por homossexuais tornou-se muito presente em todo o mundo, especialmente em função do controle da Aids, dos avanços tecnológicos e medicinais, além da estabilização das relações homossexuais, mas, apesar da estabilização da Aids, do maior conhecimento quanto às suas causas e de resultados mais eficazes nos tratamentos, a legislação brasileira continuou “impregnada de visões ultrapassadas, lógicas irracionais e fundamentos discriminatórios”. O partido sustenta que o fato de a Anvisa ter alterado a proibição permanente de doação de sangue por homossexuais para uma proibição temporária de um ano na hipótese do homossexual ter tido relação sexual nos últimos 12 meses, pode soar, à primeira vista, como relativo progresso normativo, mas, na prática, continuou impedindo a doação permanente dos homossexuais que tenham mínima atividade sexual.
O partido pede liminar para suspender imediatamente os efeitos da portaria do Ministério da Saúde e da resolução da Anvisa e, no mérito, que tais normas sejam consideradas inconstitucionais. O PSB afirma que a legislação brasileira já exclui a doação de sangue por pessoas promíscuas, sejam hétero ou homossexuais. “Nesse contexto, veja-se que o objetivo desta ação direta não compromete, de forma alguma, a segurança dos procedimentos hemoterápicos. O que se busca é extinguir do ordenamento jurídico brasileiro os ranços discriminatórios que, sob o véu da ‘proteção’, mantêm exclusão social inadmissível na ordem constitucional vigente”, conclui o PSB.
Para a advogada Marianna Chaves, diretora nacional do IBDFAM, a norma é “absolutamente” incompatível com o nosso sistema. “É um dispositivo incapaz de sobreviver a um escrutínio constitucional”, diz.
“A um só tempo, temos um dispositivo que fere de morte a dignidade humana, a igualdade, a não discriminação por orientação sexual e sexo, e a razoabilidade”, reflete.
A advogada afirma que a norma contém uma diferenciação arbitrária entre homens e mulheres, entre homo/bi e heterossexuais, que afronta a dignidade dos homens que fazem sexo com homens. Distinção que, segundo ela, é “irracional” e não se justifica por razões de saúde pública.
“Todas as normas que proíbem a doação de sangue por homens que fazem sexo com homens (homossexuais ou bissexuais) possuem a sua gênese no começo dos anos 80, quando pouco se sabia sobre a AIDS, que era tida como uma doença eminentemente gay. Com toda a evolução que a ciência teve em termos de conhecimento sobre o contágio da doença e a sua forma de disseminação, essas normas passaram a ser contestadas nos últimos anos em diversos países”, relata.
A proibição, explica Marianna Chaves, poderia se justificar no passado, à época da descoberta da AIDS. Quando pouco se sabia sobre a doença, sobre as formas de contágio e sobre a disseminação. Contudo, na atualidade, essa proibição não se justifica e pode, inclusive, ter o efeito contrário do que se pretende.
“Com a manutenção de normas dessa natureza, se por um lado passamos a ideia de que os gays e bissexuais masculinos são doentes em potencial, passamos o juízo de que o resto da população estaria ‘imune’ ao contágio. E isso é um grande erro. Um duplo equívoco”, assegura.
Ela destaca que o problema é o sexo desprotegido. “É certo que algumas pesquisas indicam que o sexo anal tem potencial maior de transmissão de Doenças Sexualmente Transmissíveis, mas é um erro supor que só gays e homossexuais praticam esse tipo de ato sexual. E ao analisarmos as estatísticas ao redor do mundo, essa conclusão se confirma. Um número altíssimo de heterossexuais que praticam sexo anal não fazem uso de preservativo. Temos que mudar o foco da questão. Não é o sexo, a orientação sexual ou a identidade de gênero que indica o potencial de adquirir ou transmitir DSTs. É o comportamento concreto das pessoas”, ressalta.
A prevenção deve ser uma orientação para todos: homens ou mulheres; cis ou transgêneros; jovens ou idosos; hétero, homo ou bissexuais; brancos, negros, amarelos ou índios.
O sexo inseguro e desprotegido deve ser o foco das políticas de saúde pública relativas a DSTs e doação de sangue e hemoderivados.