O Conselho Nacional de Justiça – CNJ começou a discutir, na terça-feira, dia 24, durante a 270ª sessão ordinária, se cartórios podem registrar escrituras públicas de uniões estáveis poliafetivas.

Trata-se do julgamento do pedido de providência 1459-08.2016.2.00.0000, que requer a proibição das lavraturas de escrituras públicas de “uniões poliafetivas” pelas serventias extrajudiciais do Brasil. A decisão do CNJ irá orientar todos os tabelionatos do País sobre os pedidos para reconhecimento de famílias poliafetivas. O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM se posiciona pela improcedência do pedido.

Ministério Público defende o reconhecimento das uniões poliafetivas

Em nome do Ministério Público, o subprocurador-geral da República, Aurélio Virgílio, defendeu que não há nenhuma nulidade no ato do tabelião que reconhece esse tipo de relação, “desde que essa seja a vontade das pessoas”. Ele lembrou que a poligamia, assim como a homossexualidade, era considerada crime décadas atrás, e que isso não existe mais porque o conceito de família evolui com a sociedade. “Do ponto de vista dos direitos humanos, não vejo como admitir restrição, muito menos impor ao tabelião que tipo de declaração deve fazer sobre a vontade das partes”, disse.

Ele criticou, ainda, a demagogia com que é tratado o tema. “O poliamor não é novo na história, desde a antiguidade se pratica, talvez com bem menos dose de hipocrisia do que como se comenta hoje em dia”, afirmou. Para Virgílio, a discussão diz respeito à esfera privada da vida das pessoas e, portanto, não cabe ao Estado interferir nesta decisão. Ele defendeu, ainda, que não cabe fazer interpretação restritiva das leis sobre o tema, pois uma visão nesse sentido levaria, também, ao não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. “O caso não viola a Constituição nem o Código de Civil”, sustentou.

Pedido de Vista interrompeu o julgamento

O ministro João Otávio de Noronha, relator da matéria e corregedor-geral de Justiça, votou a favor do pedido de providência, para que o conselho proíba os cartórios de concederem escrituras a uniões poliafetivas. “O conceito constitucional de família, o conceito histórico e sociológico, sempre se deu com base na monogamia”, argumentou.

O ministro afirmou que “ninguém é obrigado a conviver com tolerância de atos cuja reprovação social é intensa”. “E aqui ainda há intenso juízo de reprovação social. Sem querer ser moralista, estou dizendo o que vejo na sociedade”, relatou.

Após o voto de Noronha, o conselheiro Aloysio Corrêa pediu vista e o julgamento foi interrompido. Apesar disso, o conselheiro Luciano Frota informou que irá divergir do relator.

Manifestação do IBDFAM

O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM foi intimado pelo CNJ a apresentar as manifestações necessárias e se posicionou pela improcedência do pedido. “O pedido de providências deve ser julgado improcedente, uma vez que obstar o reconhecimento jurídico das uniões poliafetivas afrontaria os princípios da liberdade, igualdade, não intervenção estatal na vida privada, não hierarquização das formas constituídas de família e pluralidade das formas constituídas de família”, diz um trecho da manifestação do IBDFAM.

O advogado Marcos Alves da Silva, diretor nacional do IBDFAM, questiona qual seria a base para a proibição da feitura de escrituras públicas declaratórias de união poliafetiva.

“Como sabido, a união estável é um fato social ao qual o Direito atribui efeitos legais. A união estável não é constituída por um ato cartorial como o casamento. Ela é primeira e fundamentalmente um fato. O pacto de união estável nada mais é que uma declaração de auto reconhecimento do fato pelos partícipes daquela relação. Eles declaram que existe e que reconhecem a existência de sua união”, explica. “Ora, se três pessoas reconhecem e desejam declarar que vivem em união poliafetiva, têm elas efetivamente tal direito. Se de tal declaração vão decorrer os mesmos efeitos que atualmente são reconhecidos às declarações de união estável entre um homem e uma mulher ou à união homoafetiva esta é outra questão”, argumenta.

“A escritura não constitui a união poliafetiva”, diz advogado

O advogado reflete que o CNJ poderia evocar a “moral e os bons costumes” para proibir a feitura de declarações de união estável entre três ou mais pessoas. “E aí exatamente reside o perigo. Poderia ser realizada, por exemplo, uma leitura por analogia do artigo 115 da Lei de Registros Públicos, que dispõe sobre os atos constitutivos de uma pessoa jurídica da seguinte forma: ‘Não poderão ser registrados os atos constitutivos de pessoas jurídicas, quando o seu objeto ou circunstâncias relevantes indiquem destino ou atividades ilícitos ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral e aos bons costumes’”.

Ele destaca que a escritura não constitui a união poliafetiva. “Da escritura consta apenas a declaração de reconhecimento de um fato pelos declarantes. Imaginemos que alguém alegue que tal declaração ofende a ordem pública, a moral e aos bons costumes. Em relação a tal assertiva hipotética levanto duas objeções fundamentais: (i) a declaração, em si, não pode ser considerada ofensiva a nada. Pode alguém até considerar o fato declarado ofensivo à moral e aos bons costumes, mas, jamais a declaração de existência e reconhecimento de tal fato. A declaração, portanto, é, por si só, isenta; (ii) a declaração de união estável entre dois homens é considerada por boa parte da população brasileira uma aberração e, também, gritante ofensa aos bons costumes; todavia, o Supremo Tribunal Federal considerou tal união legítima família e o CNJ, por meio de Provimento, estabeleceu que os cartorários não podem se negar a realização de habilitação para o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ora, como poderá, agora, o CNJ evocar a moral ou bons costumes para vedar a feitura de escritura pública declaratória de união estável poliafetiva?”, reflete.

Segundo ele, cada pessoa, cada família, cada grupo religioso ou associativo pode e deve reger-se pelos princípios morais que julgarem adequados, “mas não têm o direito de fazer de tais princípios normas estatais impositivas a todos os cidadãos de um Estado que se declara laico, democrático e plural”.

“Por tal razão, não sei que argumentos minimamente razoáveis poderiam ser evocados para que o CNJ venha a proibir as escrituras públicas de união estável poliafetiva. Note-se, não se trata de fazer qualquer juízo de valor sobre tais uniões. Não é esta questão. A vedação, todavia, constituiria, sem sombra de dúvida, grave ofensa a princípios constitucionais e a direitos fundamentais, como, por exemplo, o da liberdade de declarar por escritura pública o que o cidadão quiser, apenas porque almeja ter a segurança ‘da fé pública’ da dita declaração. A vedação de emissão de escritura pública de união estável poliafetiva constituirá atentado à liberdade e um lamentável equívoco”, afirma.