A Lei 14.010/2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado – RJET no período da pandemia do Coronavírus, foi sancionada com vetos, na semana passada, pelo presidente Jair Bolsonaro. Em seu capítulo X, a norma traz previsões específicas para o Direito das Famílias e das Sucessões, com determinações sobre a prisão do devedor de alimentos e prazos para processos de inventários e de partilha.
De acordo com a nova lei, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações, até 30 de outubro de 2020.
Desde o início da pandemia, os casos de prisão civil de devedores de alimentos vinham gerando debates. Decisões contra e a favor do regime domiciliar foram tomadas nos tribunais, uma vez que os réus alegam estar passando por dificuldades financeiras devido ao momento. Além disso, o sistema prisional não oferece condições básicas para se evitar a contaminação pela Covid-19.
O juiz Rafael Calmon, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, afirma que por se tratar de um problema de saúde pública mundial, em que as autoridades e especialistas da área determinaram que todos fiquem em casa, o cenário pandêmico acarretou problemas na economia familiar, motivo suficiente para não ser decretada a prisão civil.
“A prisão civil é cumprida em estabelecimento prisional, onde a coletividade é uma das caraterísticas, podendo ter várias outras pessoas contaminadas ou passíveis de se contaminarem”, ressalta o magistrado.
Além disso, ele enfatiza que o próprio Superior Tribunal de Justiça – STJ, seja por resolução ou decisão, apontou que não se deve cumprir penas em presídio, mas em regime domiciliar. O que, na sua opinião, não seria o ideal, uma vez que toda a população está sujeita a ficar dentro de casa neste período.
“Acompanho a maioridade da doutrina e não concordo que essa seja a medida ideal. O aprisionamento, para mim, não deve ser decretado neste momento, ou deve ser decretado agora para o cumprimento só quando acabar a pandemia – o que, convenhamos, também não é o ideal. O correto é não decretar, porque não será eficaz, já que todos nós já estamos em uma ‘prisão domiciliar’ imposta pela Covid-19”, afirma o magistrado.
Para Rolf Madaleno, advogado e diretor nacional do IBDFAM, parte do problema dos processos de execução de alimentos em tempos de pandemia ocorreram após a Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que autoriza a substituição da prisão fechada do devedor de alimentos pelo regime domiciliar, para evitar a propagação da doença.
“Isso não é prisão, isso é constrangimento, afinal todos nós estamos em ‘prisão domiciliar’. Penso que a execução teria que ser proposta pelos meios executivos, como a penhora e o desconto em folha quando for possível, por exemplo. Mas a prisão domiciliar seria premiar o devedor de alimentos”, defende o especialista.
Medidas atípicas
Uma saída para tentar combater o inadimplemento dos devedores de alimentos seriam as chamadas medidas atípicas. Calmon explica que são as medidas coercitivas, mandamentais ou sub rogatórias, estabelecidas no artigo 139, inciso IV, do Novo Código de Processo Civil, que prevê a aplicação pelos juízes para o cumprimento das decisões.
“O STJ também já admitiu em vários precedentes situações em que foi possível reter o passaporte e a carteira nacional de habilitação. Também é possível, em tese, estabelecerem-se juros progressivos e multa pecuniária”, destaca o juiz.
Rolf analisa que essas medidas podem estar escassas neste momento, já que as pessoas não estão podendo sair de casa normalmente. “São medidas que precisam ser pensadas. O fato é que o devedor dos alimentos só paga a pensão alimentícia quando sofre um constrangimento igual ou pior daquele criado por ele ao não pagar a pensão. Atualmente, é claro que as dificuldades estão presentes, mas muito mais dificuldade têm aqueles que são inteiramente dependentes da manutenção da subsistência dos seus progenitores”, enfatiza.
Casos com jovens e adultos
O magistrado Rafael Calmon lembra que o Brasil foi um dos últimos países do mundo ocidental a prever a prisão civil como método coercitivo para o devedor pagar a dívida de alimentos. Além disso, o próprio Supremo Tribunal Federal – STF reconheceu que as nossas prisões se encontram em um sistema de inconstitucionalidade, o que demonstra como é caótico o sistema prisional brasileiro.
Por isso, com relação às situações que têm crianças e adolescentes como credoras e outras que têm somente adultos, ele analisa: “Encaminhar à prisão devedores por causa de falta de pagamento a uma criança, incapaz ou vulnerável, é reprovável por um lado porque o sistema prisional foi declarado como em estado inconstitucional de coisas. Mas, do outro lado, o incapaz está precisando de alimentos.”
Então, para ele, a análise deve ser diferente quando a situação envolve incapazes ou vulneráveis. “Quando envolve adulto capaz, para mim, não deveria ser decretada a prisão civi”, reitera.Já o advogado Rolf Madaleno afirma ser contra a pensão para adultos. Para ele, os jovens têm direito aos alimentos até a conclusão da universidade e enquanto não alcançam os 18 anos.
“O fato é que os alimentos entre os adultos estão em extinção. Hoje, se resumem em pensão alimentícia transitória por algum tempo, enquanto o outro se recupera ou estreia no mercado de trabalho. São alimentos quase que por tempo limitado, transitório, mas que não têm o cunho alimentar mais perene, presente e efetivo, de uma necessidade mais vinculada que são os filhos totalmente dependentes”, conclui.
Novas determinações e vetos
Diretor nacional do IBDFAM, o advogado e professor Flávio Tartuce participou da elaboração do texto da Lei 14.010/2020, auxiliando a comissão de juristas liderada pelo professor Otávio Luiz Rodrigues Jr. Ele escreveu, em março, artigo para o IBDFAM sobre a prisão civil por dívida de pensão alimentícia em meio à pandemia. Em entrevista na última sexta-feira (12), Tartuce comentou a sanção da norma e os vetos do presidente Jair Bolsonaro.
O artigo 15, que determina a prisão sob modalidade domiciliar ao devedor de alimentos, está em acordo com o entendimento do especialista, apresentado em seu texto publicado no portal do IBDFAM. Sobre o artigo 16, ele observa que as regras referentes a processos de inventários e partilhas repercutem para o pagamento de acréscimos tributários e penalidades diante dos atrasos. Além desses, outros dispositivos da nova lei também trazem implicações à realidade das famílias, segundo Flávio Tartuce.
“Com repercussões indiretas, pontuo o artigo 3º, que trata da suspensão dos prazos de prescrição e de decadência até 30 de outubro, o que pode repercutir em várias demandas familiares, como a cobrança de alimentos. E também a suspensão dos prazos de usucapião até a mesma data, com incidência para a usucapião familiar ou por abandono do lar, previsto no art. 1.240-A do Código Civil (art. 10)”, atenta Tartuce.
O advogado lamenta os vetos a todos os dispositivos que tratavam de soluções contratuais em contratos civis, os artigos 6º, 7º e 9º. “Uma pena, pois as regras traziam segurança jurídica e evitavam uma judicialização desnecessária. Também houve um veto quanto ao artigo 11, que trazia poderes para o síndico intervir no acesso às áreas comuns e até evitar as festividades na propriedade exclusiva em condomínios edilícios. Reputo que essas regras eram interessantes à prática e não concordo com os vetos”, assinala.
Salve a data
O IBDFAM promoverá, em 16 de julho, o Seminário: Temas atuais sobre alimentos. O evento on-line, por meio da plataforma Zoom, contará com a exposição de grandes especialistas da área de Família e Sucessões. A coordenação é da advogada e vice-presidente do IBDFAM Maria Berenice Dias. Reserve a data na sua agenda, o conteúdo programático e as inscrições estarão disponíveis em breve.
Fonte: IBDFAM