À primeira vista, sharenting pode parecer uma palavra estranha. Entretanto, o termo em inglês, criado há mais de dez anos, dá nome a uma prática bastante comum ao cotidiano hiperconectado das redes sociais. A expressão consiste na junção das palavras share – que, traduzida, vira compartilhar – com parenting – parentalidade. Trata-se, portanto, do nome dado ao hábito de os pais publicarem, na internet, vídeos e fotos dos filhos mostrando parte de sua rotina e a relação em família.

Em redes sociais como Facebook, Instagram e TikTok, perfis exclusivamente voltados para a produção desse tipo de conteúdo são comuns e alguns deles mostram desde as primeiras imagens do ultrassom até fotos na praia, em festas de aniversário e no primeiro dia de escola. Há inúmeros casos em que a imagem da criança é utilizada com fins publicitários para a divulgação de produtos como roupas e cosméticos. Esse cenário acende o alerta para o direito à privacidade. Qual é o limite para tanta exposição?

Na França, um projeto de lei quer proibir os pais de compartilharem fotos de seus filhos nas redes sociais sem a permissão das crianças. A proposta anti-sharenting está em debate no Senado do país e jogou luz sobre o tema em todo o mundo.

O projeto prevê que os pais sejam responsabilizados pelo direito à privacidade dos filhos que não possam consentir que suas imagens sejam publicadas on-line. Em casos extremos, um juiz de família pode até retirar o direito de os pais compartilharem as imagens, caso seja considerado excessivo ou prejudicial.

A proposta também visa punir pais influenciadores que ganham seguidores e dinheiro com o compartilhamento de imagens das crianças. Nesses casos, a renda adquirida por meio do uso comercial de fotos e vídeos deve ser depositada em uma conta que os jovens tenham acesso a partir dos 16 anos.

O texto prevê ainda o “direito ao esquecimento”, segundo o qual as crianças poderiam ter suas próprias fotos e vídeos removidos da internet posteriormente, se assim desejarem.

Estudos justificam preocupação

De acordo com um estudo da Comissão da Infância do Governo da Inglaterra, publicado em 2018, a foto de uma criança é compartilhada on-line 1.300 vezes antes dos 13 anos – idade em que ela pode ser autorizada a criar seu próprio perfil em mídias sociais.

Segundo o Observatório da Parentalidade e Educação Digital da França, mais da metade dos pais franceses já compartilharam a foto de seus filhos em ambiente on-line. Destes, 91% fizeram isso antes que os filhos atingissem cinco anos de idade.

Especialistas também alertam para o conteúdo das imagens. Muitas vezes, não é apenas o rosto da criança que aparece, mas também seu ambiente privado como o quarto e a casa. Em geral, tais imagens vêm acompanhadas de dados adicionais que ajudam a identificar informações como nome da criança e onde elas estudam.

A preocupação se dá pelo risco de que as imagens e informações caiam em círculos de pedófilos. Um relatório do portal alemão jugendschutz.net, publicado em 2019, apontava que o Instagram era usado por uma rede de “pessoas com interesse sexual em crianças”.

O direito dos filhos

A advogada Isabella Paranaguá, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, seção Piauí – IBDFAM-PI, chama a atenção não só para o sharenting, mas também para o oversharenting, quando a prática se torna excessiva e, consequentemente, ainda mais prejudicial.

“Já há estudos de credibilidade que comprovam os riscos do sharenting, voltados para questões de reputação, comportamento, problemas sexuais, vazamento de dados e a utilização deles para fins criminosos, bem como outros atos ilícitos praticados na deep web”, ela comenta.

“Apesar do livre planejamento familiar ser um direito constitucional, isso não quer dizer que as crianças e os adolescentes são mera extensão da vida dos seus pais. Portanto, eles não podem gozar de maneira deliberada dos direitos dos filhos”, analisa.

Diante disso, a advogada defende que o Estado deve sim regular, de alguma forma, a maneira como os pais lidam com a imagem dos filhos em ambiente on-line.

“Deve haver um amparo do Estado sobre as crianças e adolescentes, sob o olhar do direito infantojuvenil aliado ao Direito de Família. Ter a intimidade exposta de forma indiscriminada pela prática do sharenting pode caracterizar violação dos direitos fundamentais da criança ou do adolescente. Assim, cada caso precisa ser analisado individualmente para dar as devidas constatações”, conclui.