Um homem que solicitou a revogação da paternidade socioafetiva estabelecida com uma menina teve o pedido negado pela 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP. A decisão unânime reformou o entendimento firmado pelo juízo em primeiro grau, destacando que o mero arrependimento não é suficiente para a anulação.

De acordo com os autos, o autor da ação reconheceu a filha de sua então noiva, com declaração de vínculo socioafetivo. Com isso, a menina passou a utilizar seu sobrenome. Cinco meses após o casamento, o relacionamento chegou ao fim com divórcio litigioso, razão para o pedido de revogação da paternidade.

O requerente alegou que o pedido judicial para reconhecimento da socioafetividade foi feito unicamente para agradar a mãe da criança. Por isso, requer a revogação do ato, com o objetivo de excluir o patronímico e o seu nome como pai, bem como dos avós paternos, do registro de nascimento da menina.

Reconhecimento de socioafetividade é irrevogável

O relator, desembargador Antônio Carlos Mathias Coltro, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, afirmou que, de acordo com o Código Civil de 2002, o reconhecimento de paternidade socioafetiva é irrevogável, e o mero arrependimento não é motivo válido para o pedido. Para isso, seria imprescindível a ocorrência de vício macular à vontade ou constatação de fraude ou simulação.

Segundo o magistrado, não é o caso de analisar provas sobre a efetiva constituição do vínculo, já que o reconhecimento foi realizado voluntariamente, com a livre manifestação da vontade do pai. “Em suma, inexistente prova de vícios na manifestação da vontade do autor ou de erro registrário, o pedido é manifestamente improcedente”, concluiu.

Princípio da afetividade

Diretor nacional do IBDFAM, o advogado Ricardo Calderón elogia a decisão. Segundo ele, o entendimento do desembargador do TJSP prestigia o princípio da afetividade, expressamente citado no acórdão, ao manter o vínculo da paternidade. De acordo com o especialista, essa é a orientação em que caminha a jurisprudência.

“O entendimento foi firme ao indicar que uma filiação espontaneamente reconhecida e lastreada em um vínculo socioafetivo vivenciado pelas partes não pode posteriormente ser desfeita. Não se permite que um vínculo socioafetivo regularmente formalizado, por fatores outros e sem motivação relevante, venha a ser desfeito”, comenta Calderón.

Ele frisa: “A socioafetividade é reconhecida como uma espécie importantíssima de vínculo familiar, com a seriedade inerente a tais vínculos filiais, de modo a impedir que um pai, após desenlace do relacionamento conjugal com a mãe, venha a querer romper o vínculo filial com a filha, reconhecida por ele em data pretérita. O vínculo socioafetivo regularmente formulado não pode ser desfeito posteriormente por desentendimentos do casal”.

O advogado destaca que o acórdão foi fartamente fundamentado com doutrina e jurisprudência que reforçam o percurso construtivo do princípio da afetividade no Direito de Família brasileiro. “Estamos em um momento de passagem de um sistema que privilegiava os vínculos presuntivos e biológicos de filiação para este em que são privilegiados e prestigiados de igual maneira os vínculos socioafetivos.”

Melhor interesse de crianças e adolescentes

“A irrevogabilidade deliberada nas entrelinhas do acórdão é central para preservação do melhor interesse de crianças e adolescentes para separarmos as questões filiais, ou seja, de seus pais com seus filhos, das questões conjugais, seja de casamento ou união estável, dos pais entre si, entre os adultos”, detalha.

No caso concreto, o vínculo socioafetivo foi devidamente constatado no momento do reconhecimento, com manifestação da vontade do pai. Logo, é suficiente e deve ser mantida.

“Não se pode desfazer esse reconhecimento pretérito, salvo as exceções do vício do consentimento, conforme vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça – STJ, com hipóteses específicas de vícios na manifestação da vontade, com prova robusta. No caso, contudo, não restou comprovado nenhum vício do consentimento.”

Consciência e responsabilidade

Por isso, todos os atores envolvidos devem ter consciência da importância do ato de estabelecer e formalizar suas relações. “A socioafetividade é um dos elementos passíveis de gerar o vínculo de filiação, pode ser reconhecido judicialmente e alguns casos até extrajudicialmente. Sua formalização deve ser feita com responsabilidade entre as partes, conscientes de que os vínculos de filiação, em regra, são perenes.”

A decisão do TJSP está em sintonia com diretrizes e bandeiras do IBDFAM, segundo o advogado. Ele finaliza com citação ao clássico O Pequeno Príncipe (1943), de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944): “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.

“Devemos tratar com seriedade a socioafetividade, com responsabilidade no momento de formalizar nossos vínculos afetivos. Afetividade e responsabilidade são palavras que devem andar de mãos dadas”, diz Calderón.