Há um ano, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal – STF entendeu como inconstitucional o impedimento à doação de sangue por homens que mantêm relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, como homossexuais e bissexuais. O julgamento, que teve o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM como amicus curiae, foi um marco na garantia de direitos e na luta por igualdade da população LGBTI.

Graças a essa decisão, o carioca Bruny Murucci, morador de Teófilo Otoni (MG), de 35 anos, pôde realizar há um mês uma transfusão de sangue para parentes de amigos internados com Covid-19. Para o artista e produtor cultural, a restrição era incoerente com as campanhas recorrentes para o incentivo à doação.

Ele conta que, em ocasião anterior, foi impedido de doar sangue para uma amiga após falar sobre sua orientação sexual. “Mesmo não tendo nenhum comportamento de risco, fui chamado após a triagem em uma sala onde a assistente social me mostrou uma normativa que me impedia de fazer a doação pelo simples fato de ser LGBT. Fiquei muito triste, pensando o que seria da minha amiga se ela não conseguisse a transfusão.”

Para Bruny, quando se elege a população LGBTI como um grupo de risco, admite-se que todos têm um comportamento sexual de maior exposição às doenças, em uma clara expressão de preconceito. “Esses fundamentos preconceituosos, retrógrados só vão sumir por meio da informação. Os estigmas que nos colocam precisam ser apagados da nossa sociedade para que o preconceito acabe de vez. Precisamos combater essas ideias conservadoras com amor, sinceridade e empatia”, propõe.

Na tentativa mais recente de doar sangue, a experiência foi outra. Vários questionamentos foram feitos na triagem, como de hábito, mas a sexualidade, desta vez, não impediu o procedimento. “Foi uma vitória para a nossa comunidade LGBTI”, diz Bruny, que também atua como Coordenador Municipal de Diversidade. Agora, segundo ele, resta a necessidade de campanhas a fim de diminuir o preconceito e estimular o ato de solidariedade junto a essa parcela da população.

Restrição era discriminatória, segundo ministros do STF

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5.543, o Partido Socialista Brasileiro – PSB questionava a portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e a resolução RDC 34/14 da Anvisa, que estabeleciam critérios de seleção para potenciais doadores de sangue. Eram inaptos, entre outros, homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes à triagem.

Em 2017, por ocasião do início do julgamento, a advogada Patrícia Gorisch, diretora nacional do IBDFAM, fez a sustentação oral do Instituto como amicus curiae, observando a incompatibilidade das medidas vigentes. Com o placar final, no ano passado, a maioria dos ministros mostrou concordância com os argumentos apresentados pelo Instituto.

O entendimento da maioria dos ministros foi de que os dispositivos reforçavam o preconceito contra a população LGBTI. A restrição, afinal, elegia um grupo de risco em vez de uma conduta de risco, desconsiderando o uso de preservativo e a existência de parceiros fixos entre homossexuais. Além disso, a vinculação de uma maior incidência de doenças sexualmente transmissíveis junto a essa população ignora pesquisas sobre o aumento da contaminação entre heterossexuais.

Atendimento universalizado

Em Minas Gerais, a decisão do STF foi regulamentada pela Lei Estadual 23.654/2020, publicada em junho passado, para determinar: “As restrições, as normas, os requisitos e os critérios para doação de sangue serão aplicados igualmente a todos, sem distinção discriminatória de cor, raça, orientação sexual, identidade de gênero, entre outros, avaliando-se justificadamente as condutas individuais visando à proteção da saúde pública”.

Seguindo a norma, a Fundação Hemominas promove a universalização do atendimento a todo cidadão que deseja voluntariamente ser um doador de sangue. “Com isso, temos uma maior possibilidade de melhorar os estoques e atender com segurança a população”, comenta Viviane Guerra, gerente de Captação e Cadastro da Fundação.

Ela explica que todos os candidatos são submetidos a avaliação clínica e devem preencher os requisitos para doação de sangue de acordo com as normas técnicas. Antes da coleta do sangue, passam por triagem clínica, com avaliação do histórico de saúde aptidão para fazer o ato de solidariedade.

Crise nos bancos de sangue

O fim da restrição, além de uma conquista para a população LGBTI, veio em boa hora. Atualmente, a Fundação Hemominas enfrenta uma situação crítica em seus estoques de sangue, principalmente dos tipos sanguíneos O+, O- e A+. “Em virtude da pandemia, nós tivemos uma queda grande nos comparecimentos e isso impacta diretamente nos nossos bancos de sangue.”

As unidades seguem todos os protocolos de higienização e obedecem às restrições por conta da pandemia da Covid-9. “Convocamos toda a população que esteja em boas condições de saúde, com condições de sair de casa com segurança. Todos os dias, há pessoas em ambulatórios e hospitais precisando de uma transfusão. Só conseguimos salvar essas vidas com o gesto nobre e solidário dos doadores”.

site do Ministério da Saúde tira todas as dúvidas sobre a doação de sangue, como as unidades de coleta mais próximas e os requisitos necessários. Para os mineiros, o portal da Fundação Hemominas e o MG App Cidadão trazem informações detalhadas sobre o agendamento.

Resgate da dignidade

Para Maria Berenice Dias, vice-presidente do IBDFAM e presidente da Comissão de Direito Homoafetivo do Instituto, a decisão do STF veio resgatar a dignidade das pessoas LGBTI. “E quem sabe espancar o preconceito que ainda persiste na nossa sociedade contra esse segmento”, acrescenta a advogada.

Os dispositivos buscavam respaldo em estudos sobre maiores chances de contaminação por HIV entre homens homossexuais em razão do sexo anal. Contudo, desconsideravam, para o veto à doação de sangue, a possibilidade do uso de preservativos, da existência de parceiros fixos e mesmo a adesão à mesma prática nas relações heterossexuais.

“Está mais do que comprovado que o segmento não é mais vulnerável do que os outros. Além disso, exames e testagens feitas no sangue detectam qualquer tipo eventual de incompatibilidade para a doação”, frisa Maria Berenice.

Decisões vanguardistas

“Temos muito a reverenciar as decisões vanguardistas da Suprema Corte com relação a esse tema, e também reconhecer o papel significativo do IBDFAM nessas conquistas. A participação do IBDFAM neste processo ajudou a derrubar essa injustificável restrição”, destaca Maria Berenice Dias.

Segundo a vice-presidente do Instituto, o trabalho como amicus curiae neste julgamento mostra que o IBDFAM “desfralda bandeiras, primando pelos princípios da igualdade, do direito à liberdade e, principalmente, do respeito à dignidade humana”. Com o mesmo empenho, o Instituto garantiu o reconhecimento das uniões homoafetivas, conquista que completa dez anos também nesta semana.

“A posição do IBDFAM desde a sua criação, há 24 anos, sempre se distinguiu pela busca do reconhecimento da igualdade de direitos, da preservação dos direitos de cidadania, da pessoas do reconhecimento de seus vínculos afetivos e as relações entre pessoas do mesmo sexo”, finaliza Maria Berenice.

Seminário relembra conquistas

Também faz aniversário nesta semana o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4.277. Em maio de 2011, o STF reconheceu a união estável homoafetiva como entidade familiar, outra conquista com a participação do IBDFAM. Nesta quinta-feira, 6 de maio, evento promovido pela Comissão de Direito Homoafetivo do Instituto relembra a data.

O seminário 10 Anos do Reconhecimento das Famílias Homoafetivas pelo STF: Há o que comemorar! reunirá especialistas do IBDFAM em uma transmissão por meio da plataforma Zoom, a partir das 18h. Especialistas relembram decisão histórica e destacam a evolução nos tribunais na última década, assim como a necessidade de lei para a garantia de direitos. As inscrições estão encerradas.