Tios-avós conseguiram recentemente o direito de incluir seus nomes no registro civil de uma adolescente. Pais socioafetivos, eles são responsáveis pela moradia, criação e bem-estar da menina desde seus primeiros anos de vida. A decisão é do juiz Mábio Antônio Macedo, da 5ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia.
Não haverá prejuízo dos nomes dos pais biológicos no registro, o que configura um caso de multiparentalidade. Os genitores romperam o relacionamento após o nascimento da menina, há 12 anos. A mãe foi morar no exterior, enquanto o pai, mesmo vivendo em Goiânia, não mantém muita proximidade com a filha.
A concordância dos pais biológicos com o pleito foi considerada pelo magistrado em sua decisão. O juiz identificou ainda que os pais socioafetivos prezam pelo melhor interesse da adolescente e que tribunais superiores já reconhecem a multiparentalidade, mesmo não havendo dispositivo legal que ampare tal direito.
A advogada Chyntia Barcellos, associada ao IBDFAM, representou os pais biológicos e socioafetivos na ação. Ela ressalta que, para além dos direitos parentais, o reconhecimento efetivo da parentalidade socioafetiva visa primordialmente o melhor interesse da criança ou adolescente.
“É certo que, para o Direito das Famílias, a afetividade já superou o campo dos fatos e pode se traduzir como fonte de obrigação e princípio jurídico, norteador dessas relações, como no presente caso. Como não reconhecer uma filiação que traz e se reveste de responsabilidade financeira, emocional e moral com uma adolescente por quase 10 anos?”, indaga a advogada.
Dificuldades no reconhecimento da multiparentalidade
Em agosto deste ano, a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça – CNJ publicou o Provimento 83, que promoveu ajustes no registro extrajudicial da filiação socioafetiva. Com a medida, só é autorizada, em cartório, a parentalidade socioafetiva de filhos acima dos 12 anos. Anteriormente, após o Provimento 63, de 2017, o reconhecimento voluntário era autorizado para pessoas de qualquer idade.
Segundo Cynthia, houve, então, o retorno ao Judiciário da grande maioria dos casos de reconhecimento de multiparentalidade. Naquele em que atuou, a concordância dos pais biológicos foi fundamental para o êxito da ação, sem demora ou controvérsias.
“A grande maioria da jurisprudência está amparada em casos consensuais, onde a família biológica está de acordo com a socioafetiva. Mas pode ocorrer uma dissidência e assim nascer um litígio, causando demora e inúmeros prejuízos à criança e/ou adolescente envolvido”, observa.
Goiás na vanguarda da discussão
Presidente do IBDFAM seção Goiás, a advogada Marlene Moreira Farinha Lemos observa que o estado tem reiteradamente se pronunciado na vanguarda no reconhecimento da multiparentalidade. “O julgado citado (defendido por Cynthia Barcellos) sugere novos paradigmas de interpretações, cujos limites atendem às vicissitudes e dinâmica das relações sociais, que não conhecem fronteiras”, atenta Marlene.
Para ela, decisões como essa consolidam as possibilidades de multiparentalidade e socioafetividade no ordenamento jurídico brasileiro, com todos os benefícios advindos do parentesco. Além disso, satisfazem os anseios dos envolvidos numa relação.
“O reconhecimento e a determinação no registro civil obviamente trará os reflexos dos direitos decorrentes da nova relação jurídica, como paternidade, direitos hereditários, previdenciários, impedimentos decorrentes do parentesco e outros. É assegurado, ao reconhecimento e à parte autora da pretensão, o direito de fazer valer tudo aquilo que decorre de uma paternidade biológica”, afirma Marlene.
Parentalidade socioafetiva nem sempre é oficializada
Para o procurador federal Társis Nametala Sarlo Jorge, também associado ao IBDFAM, decisões como a registrada em Goiânia são extremamente relevantes para o ordenamento jurídico brasileiro. “A jurisprudência, enquanto forma de se compreender o Direito, é um dado social que se constrói aos poucos e sua legitimação social cresce à medida que mais e mais julgados se alinham no mesmo sentido”, opina.
Ainda que não existam fontes seguras sobre esses dados, ele suspeita que sejam muitos os casos, no Brasil, de parentes que desempenham as funções parentais, mas não oficializam essa relação. “A observância do dia a dia faz crer que, por uma série de circunstâncias de natureza afetiva, social e econômica, essa assunção de tarefas parentais ocorre com uma frequência acima do que se ordinariamente se suspeita”, afirma.
Tarsis ressalta a importância da chancela judicial na parentalidade socioafetiva, considerando, por exemplo, os fins previdenciários. “O reconhecimento pelo Estado de uma situação de fato, recobrindo tal situação com o manto jurídico e concedendo-lhe a proteção do direito, é sumamente relevante e atende inclusive aos ditames do nosso ordenamento”, assinala.
Fonte: IBDFAM