A Constituição da República, que nesta sexta-feira (5/10) completa 30 anos, é também conhecida como Constituição Cidadã. É a sétima do país, antecedida pelas de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969 (há polêmica se esta última é mesmo uma Constituição ou apenas uma emenda constitucional). Ela introduziu novos direitos, valores e princípios fundamentais e orientadores para todo o sistema jurídico. O princípio da dignidade humana é o grande norteador e passou a ser o vértice do Estado Democrático de Direito. Nas questões privadas, absorveu os avanços sociais e fez uma verdadeira revolução no Direito de Família, a partir de três eixos básicos.
O primeiro foi ao estabelecer que homens e mulheres têm direitos iguais. Por incrível que pareça, essa igualização de direitos é recente. Basta lembrar que as mulheres só passaram a votar no Brasil em 1934 e, até 1988, o marido era o chefe da sociedade conjugal.
O segundo foi a igualização de todas as formas de filiação. A partir da Constituição de 88, ficou proibida qualquer designação discriminatória em relação aos filhos, ou seja, não há mais filhos legítimos ou ilegítimos. Todos são legítimos, sejam frutos de um casamento ou não. Até que essa igualdade fosse proclamada, milhares de crianças e adolescentes viveram às margens da sociedade, discriminadas e expropriadas de sua cidadania.
O terceiro eixo da revolução constitucional foi o reconhecimento das diversas formas de família, que deixou de ser singular e passou a ser plural. O artigo 226 elencou, exemplificativamente, três formas de se constituir uma família: pelo casamento; pela união estável; e por qualquer dos pais que vivam com seus descendentes (famílias monoparentais). Não está neste rol exemplificativo as famílias anaparentais, ou seja, aquelas constituídas por irmãos. Ninguém duvida de que um grupo de irmãos seja uma família, pois aí não há um conteúdo moral. No entanto, famílias constituídas por casais de pessoas do mesmo sexo ainda causam polêmica, apesar de hoje já terem sido realizados milhares de casamentos homoafetivos no Brasil.
Na ideia da família plural, estabelecida no artigo 226 da CF, cabem todas as representações sociais da família. Não existem mais famílias ilegítimas. Todas são legítimas. Essa é a premissa de um Estado laico (desde a Constituição de 1891, o Estado é separado da igreja), embora muitos parlamentares e políticos insistam em querer impor seus dogmas e a fé de sua religião à população em geral, e com isso restringir direitos e o conceito de família.
Ao completar seus 30 anos, a nossa Constituição Cidadã encontra o país num momento extremamente crucial, que exige que nos tornemos guardiães da democracia e de todas as conquistas até aqui obtidas. Além das tentativas de impor preceitos religiosos ao Estado laico, tomam fôlego contestações que nos levam a retrocessos inimagináveis.
A família monoparental, por exemplo, que traduz uma realidade brasileira de milhares e milhares de crianças criadas sem o pai, apenas pela mãe ou avó, foi recentemente atacada por um candidato a vice-presidente (com chances de vencer), que a classificou como “ninho de marginalidade”. Só para dar uma ideia do que isso significa, relato o ocorrido com uma adolescente de 12 anos, filha de uma conhecida. Ao tomar conhecimento dessa declaração pelas redes sociais, perguntou à mãe: “Mas eu vou dar alguma coisa na vida, né, mãe?”. Dá pra imaginar a angústia desta e de outras milhares de crianças diante de tal declaração. Ele também coloca sob ameaça a legitimidade das uniões homoafetivas, chegando a dizer que esses casais desvalorizam os imóveis dos vizinhos. Seguindo esse pensamento, os casais homoafetivos voltariam a ser considerados cidadãos de segunda classe, assim como mulheres (estão tendo seu direito de igualdade questionado), negros e as crianças criadas sem a presença do pai e da mãe.
Outros candidatos chegaram a mencionar a convocação de nova Constituinte, o que já foi prontamente criticado pelo STF — guardião-mor da Constituição. Não há necessidade de nova Constituição. Basta que os seus preceitos sejam cumpridos e respeitados.
Além de uma afronta à Constituição da República, ilegitimar famílias que não correspondam ao padrão patriarcal e heteronormativo é um atentado aos direitos humanos. Isso sem contar a ignorância de todos os avanços do pensamento científico, da Antropologia, Sociologia e Psicanálise, que já demonstraram ao mundo que família é da ordem da cultura, e não da natureza. As famílias fora dos padrões tradicionais não causam nenhuma desordem social. Elas não são nem melhores nem piores que as tradicionais. Elas possibilitam que as pessoas sejam mais livres, mais verdadeiras e autênticas, na medida em que podem escolher constituir-se como bem entender. Isso é respeitar o sujeito de direitos e de desejos. É considerar o macroprincípio constitucional da dignidade humana, um dos esteios da sustentação dos ordenamentos jurídicos contemporâneos e pressuposto da ideia de justiça. Desrespeitar as diferentes formas de família é desumanizar pessoas, é ignorar as nossas singularidades e a humanidade que há em cada um de nós.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
Fonte: IBDFAM