A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça — STJ acolheu recurso especial e determinou o processamento de pedido de adoção personalíssima apresentado por parentes colaterais por afinidade de uma criança. O casal alegou ser parente dela, pois os dois seriam tios por afinidade de sua mãe biológica – a genitora é filha da irmã da cunhada do homem do casal.

Conforme consta nos autos, o pai biológico da criança é desconhecido, e ela foi entregue pela mãe ao casal logo após o nascimento, em 2018 – motivo pelo qual buscavam a regularização jurídica da situação de fato. O processo foi assinado pela genitora, que concordou com a destituição de seu poder familiar, em caráter irrevogável.

Ao cassar o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP e a sentença que extinguiu a ação de adoção, o STJ considerou a existência de relação de afetividade entre a criança e os adotantes, a comprovação de que não houve burla ao Cadastro Nacional de Adoção e a possibilidade de interpretação extensiva da noção legal de família.

Para o relator do recurso especial dos adotantes, ministro Marco Buzzi, “o parentesco até o quarto grau definido na legislação civil não tem o alcance capaz de restringir o conceito de família ampla/extensa e do que se possa considerar parentes próximos, pois a ‘família’ dos tempos hodiernos é eudemonista, tendo como escopo precípuo a satisfação pessoal de cada indivíduo que a compõe.”

Decisões judiciais

No curso da ação, a criança chegou a ser recolhida em abrigo e foi objeto de diferentes decisões judiciais que ora a colocavam sob a proteção de uma família substituta, ora a mantinham sob a guarda provisória dos adotantes.

Por entender que não havia parentesco civil ou de afetividade e em razão de suposta burla ao cadastro de adoção, o juízo de primeiro grau extinguiu a ação sem resolução de mérito. O magistrado também determinou o acolhimento institucional da criança e a sua inserção no Cadastro Nacional de Adoção. O TJSP manteve a sentença, sob o esclarecimento de que o casal requerente continuaria apto e habilitado no cadastro.

Após a interposição de recurso especial, o casal peticionou informando que a criança, antes colocada em abrigo, havia sido encaminhada para família substituta em maio de 2020, data em que o seu recurso de apelação nem havia sido julgado pelo TJSP. A última decisão antes da análise do mérito do recurso especial pelo STJ manteve a guarda provisória com o casal adotante.

Proteção da criança

Marco Buzzi pontuou que seria possível, desde o início da ação de adoção, o deferimento da guarda provisória do menor ao casal adotante, como medida alternativa à colocação em abrigo ou família substituta, como forma de resguardar a sua proteção integral e o seu melhor interesse. Segundo ele, a permanência provisória da criança em instituição pública ou com pessoas com as quais não tinha qualquer grau de parentesco ou afinidade representou sua exposição ao risco de um dano irreversível: a possibilidade de novos episódios de rompimento de vínculos afetivos, dos quais poderiam resultar abalos psicológicos.

Para o ministro, o caso apresenta grave violação dos princípios básicos de proteção da criança, tanto em virtude da opção de acolhimento institucional, em detrimento da manutenção do menor com a família que o acolheu desde o nascimento, quanto pela extinção prematura da ação de adoção personalíssima – a despeito de o casal estar regularmente inscrito no Cadastro Nacional de Adoção.

Buzzi considerou que o casal adotante demonstrou boa-fé em todas as circunstâncias relacionadas à criança, pois buscou, desde o início, solucionar juridicamente a situação. Ressaltou ainda que o casal havia pedido sua habilitação no cadastro de adoção dois anos antes do nascimento da criança e que, de acordo a jurisprudência, a ordem cronológica de preferência das pessoas cadastradas não é absoluta, devendo ceder ao princípio do melhor interesse da criança.

“Em hipóteses como a tratada no caso, critérios absolutamente rígidos estabelecidos na lei não podem preponderar, notadamente quando em foco o interesse pela prevalência do bem-estar, da vida com dignidade do menor, recordando-se, a esse propósito, que, no caso sub judice, além dos pretensos adotantes estarem devidamente habilitados junto ao Cadastro Nacional de Adoção, não há sequer notícias, nos autos, de que membros familiares mais próximos tenham demonstrado interesse no acolhimento familiar dessa criança”, frisou o ministro.

Ao votar, o magistrado lembrou que o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA estabelece que é direito da criança ser criada e educada no seio familiar, e que o próprio estatuto prevê um conceito expandido de família, abarcando tanto a família natural quanto a família ampliada – composta por parentes próximos com os quais a criança convive e mantém laços de afetividade.

“O legislador ordinário, ao estabelecer no artigo 50, parágrafo 13, inciso II, do ECA que podem adotar os parentes que possuem afinidade/afetividade para com a criança, não promoveu qualquer limitação (se aos consanguíneos em linha reta, aos consanguíneos colaterais ou aos parentes por afinidade), a denotar, por esse aspecto, que a adoção por parente (consanguíneo, colateral ou por afinidade) é amplamente admitida quando demonstrado o laço afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, bem como quando atendidos os demais requisitos autorizadores para tanto”, concluiu o ministro.

Vínculo afetivo

O juiz Fernando Moreira, vice-presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, reconhece aspectos positivos e negativos da decisão que privilegiou o vínculo afetivo entre os adotantes, a família natural e a criança, evitando-se o rompimento definitivo dos laços, o que costuma ocorrer nos processos de adoção. “Certamente, isso trará menos sofrimento à criança. Além disso, invocou conceitos muito caros ao IBDFAM, tais como o melhor interesse da criança e o reconhecimento da família eudemonista, o que demonstra a atuação do STJ na vanguarda do Direito das Famílias.”

“Quanto aos aspectos negativos, a Corte não delimitou o que é parentesco, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Com tal decisão, já sabemos que ele extrapola o conceito do Código Civil, que é limitado até o quarto grau na linha colateral. Se não é aplicada a norma civilista, até onde vai o conceito do ECA?”, questiona o especialista.

Segundo o juiz, a falta de respostas gera um efeito direto na prática das Varas da Infância e da Juventude. “A amplitude do conceito de parentesco pode levar o magistrado da infância e a sua equipe técnica à busca persistente por parentes, ad infinitum, o que pode tornar o processo de adoção ainda mais moroso, subtraindo da criança chances reais de adoção. Entendemos que o aplicador da norma não pode perder de vista que não é qualquer parente que poderá pleitear a adoção, já que ele precisa ser próximo, além de ter vínculos de afetividade e afinidade com a criança (art. 25, parágrafo único, ECA).”

Nova roupagem para a adoção

O vice-presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM pontua que a jurisprudência do STJ vem desenhando, ao longo dos últimos anos, uma nova roupagem à adoção. “Tem ficado claro aos juristas que a função da adoção é dar uma família para a criança acolhida, e não o contrário.”

“Com base nesse entendimento, tem sido recorrente o STJ ampliar as limitações legais do ECA em matéria de adoção, permitindo adoções por avós, por irmãos, por pessoas não habilitadas à adoção, mas que mantenham vínculo de afetividade com a criança etc. Em razão disso, a Corte, por reiteradas vezes, tem assentado que o cadastro de adoção não é absoluto, podendo ser relativizado no caso concreto”, observa o especialista.

O juiz sugere que a negligência e o abandono das crianças institucionalizadas deve ser combatido por meio da intervenção precoce, atuando o Sistema de Garantia de Direitos com celeridade e com a estrutura necessária para evitar a reiteração da conduta lesiva, garantindo à família biológica instrumentos para a superação da situação de vulnerabilidade. “Caso não haja possibilidade, encaminhar, com brevidade, ao Judiciário para o início dos procedimentos de colocação em família substituta.”

Ele reflete: “O IBDFAM tem feito a diferença social com o projeto Crianças Invisíveis, já que defende a visibilidade social às crianças institucionalizadas e estimula políticas públicas em favor delas. É preciso também o envolvimento das instituições do Sistema de Garantia de Direitos e da sociedade para um esforço conjunto de mudança da realidade social das crianças institucionalizadas. O IBDFAM tem plantado as suas sementes.”

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM (com informações do STJ)