Desde o início da pandemia da Covid-19, as pessoas idosas, confinadas para conter a proliferação de uma doença para a qual compõem grupo de risco, tornaram-se mais vulneráveis às variadas formas de violência, inclusive patrimonial. Ainda que existam leis capazes de coibir os casos de má-fé, já há uma movimentação no Congresso para dar mais segurança financeira aos mais velhos, por vezes mais suscetíveis a golpes e fraudes.
A advogada Maria Luiza Póvoa, presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, lembra que a Organização Mundial de Saúde – OMS define violência ou abuso contra o idoso como “um ato único ou repetido, ou falta de ação apropriada, ocorrendo em qualquer relacionamento onde exista uma expectativa de confiança, que cause dano ou sofrimento a uma pessoa idosa”
“Dentre as possibilidades desse tipo de ato ou abuso está a violência financeira, que acontece em formas variadas, seja por apropriação e dano, quando como alguém se apropria de bens de forma indébita e causa dano patrimonial, por estelionato ou extorsão, mediante abuso de confiança, golpe de empréstimos, chantagem ou falso sequestro, e por furto e roubo, com apropriação de objetos, arrombamento de domicílios e comércio e assaltos”, comenta Maria Luiza.
De acordo com a especialista, a prática de se apropriar ou desviar bens, proventos, pensões ou qualquer outro rendimento do idoso, dando-lhes aplicação diversa de sua finalidade, também configura crime previsto no artigo 102 do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), com pena prevista de reclusão de um a quatro anos e multa.
Propostas na Câmara dão conta do problema
Dois projetos de lei, em tramitação na Câmara dos Deputados, tratam da violência patrimonial contra o idoso. O PL 5.475/2020, do deputado Ricardo Silva (PSB-SP), cria campanha pública permanente de orientação aos idosos para prevenir golpes e abusos econômicos em empréstimos consignados, financiamentos, investimentos e seguros em geral, além do combate a crimes comuns.
Já o PL 4.606/2020 busca proteger idosos de situações de má-fé durante a pandemia. O texto prevê a possibilidade de revogação da doação realizada por pessoa idosa durante estado de calamidade pública. A proposta apresentada pelo deputado Capitão Alberto Neto (Republicanos-AM) acrescenta dispositivo no Código Civil.
“Ambas as iniciativas são muito boas, pois partem do princípio da proteção sem infantilizar o idoso”, comenta Maria Luiza Póvoa. Em contrapartida, ela destaca a necessidade de um olhar atento sobre o tema, em especial na análise da proposta que trata do contexto específico da pandemia. “Na minha opinião, o PL 4.606/2020 deve ser melhor debatido e avaliado, pois traz em sua justificativa a possibilidade de revogação de doação realizada por pessoa idosa apenas durante a vigência de estado de exceção constitucional.”
Recomendação 46 do CNJ
No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ publicou a Recomendação 46 com orientações quanto à adoção de medidas preventivas para evitar atos de violência patrimonial ou financeira contra a pessoa idosa. O objetivo, segundo Maria Luiza Póvoa, foi coibir essa prática que encontrou cenário mais vulnerável em meio à pandemia.
“As recomendações são dirigidas aos cartórios de notas, de registro civil de pessoas naturais e o de registro de imóveis, os quais prestam serviços como um simples reconhecimento de firma num contrato particular ou em uma procuração – a autenticação de uma assinatura –, até a realização de serviços mais elaborados e complexos, como a lavratura de uma escritura pública”, explica a diretora nacional do IBDFAM.
Ela acrescenta: “Apesar de não proibir a prática de alguns atos, a Recomendação do CNJ orienta aos serviços extrajudiciais quanto a adoção de medidas preventivas para tentar reduzir práticas abusivas contra pessoas idosas em casos de antecipação de herança, movimentação indevida de contas bancárias, venda de imóveis, tomada ilegal e mau uso ou ocultação de fundos, bens ou ativos ou ainda em qualquer outra hipótese que possa estar relacionada com a exploração inapropriada ou ilegal dos recursos dos idosos sem o seu consentimento”.
Violências na pandemia
Segundo Maria Luiza Póvoa, são recorrentes os casos em que a pessoa que age com má-fé pertence à própria família do idoso. Além da violência patrimonial, muitos são vítimas de variados tipos de agressão, um problema igualmente acentuado na pandemia da Covid-19.
“O número de denúncias de violência contra idosos recebidas pelo Disque 100, canal de atendimento do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos – MMFDH, nunca foi tão alto. Em 2020, foram 87.907 registros, crescimento de 81% em comparação a 2019 (48.446). É o maior volume de notificações já computadas no país, segundo a série histórica, iniciada em 2011”, ressalta a advogada.
O isolamento social acirrou conflitos, e os idosos se tornaram mais vulneráveis. “As restrições de toda ordem fizeram com que incontáveis famílias passassem a conviver no mesmo ambiente, o tempo todo. Sem contar que muitos desses jovens que hoje estão em casa estavam no mercado de trabalho ou estudando. Tinham renda ou pelo menos, tinham uma atividade.”
“Diante dessas condições, muitos abusos e violências são cometidos – quase metade (48%) é praticada pelos próprios filhos. Os netos aparecem logo depois, responsáveis por 6% das violências denunciadas. Grande parte desse tipo de violência ocorre em lares onde o idoso representa a única fonte de renda de uma família. Mais de 13 milhões de moradias no país são mantidas apenas com a renda de idosos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.”