familia

Por Ainah Hohenfeld Angelini Neta.

As relações familiares na contemporaneidade são marcadas pela complexidade e pela diversidade. O modelo familiar preponderante até boa parte do século XX, qual seja, a família patriarcal e matrimonializada, já não reflete mais a realidade das famílias na atualidade.

No campo do Direito, essas mudanças repercutem como desafios a exigir do jurista a compreensão do fenômeno e uma reflexão sobre as formas de intervenção estatal nesse novo ambiente familiar.

A Constituição Federal de 1988 foi responsável no Brasil pela nova roupagem legal do Direito de Família, instituindo princípios conformadores do ordenamento jurídico e aplicáveis também nas relações familiares, como o princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da solidariedade.

A partir dos novos ditames constitucionais, a família perdeu seu caráter institucional e passou a ser compreendida como espaço ideal de realização da dignidade de seus membros. Para tanto, se impõem aos sujeitos da família um conjunto de deveres a serem observados, como, no caso das relações parentais, o dever de assistência material e moral, o dever de cuidado, de convivência, e no caso das relações conjugais, o dever de assistência e solidariedade.

Pergunta-se, no entanto, qual seria a sanção possível para o caso de descumprimento de tais deveres. Aqui entendemos que a aplicação da responsabilidade civil pode ser uma opção de sanção nessas situações.

Vale dizer que a ideia de responsabilidade é uma consequência das relações sociais na contemporaneidade, no sentido de tornar o sujeito responsável por suas condutas. Nas relações familiares essa ideia de responsabilidade se torna ainda mais evidente e crucial para a preservação dos laços familiares e para a realização da dignidade dos membros da entidade familiar.

Na verdade, a Constituição de 1988 impôs uma nova tábua axiológica para o direito civil, pautada, sobretudo, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, criando mesmo uma cláusula geral de proteção à pessoa. Neste sentido, tem-se firmado um processo de valorização das situações existenciais, com a preponderância destas sobre as situações patrimoniais. Assim, a responsabilidade civil pode ser uma resposta para o descumprimento dos deveres jurídicos impostos pela nova ordem constitucional aos membros de uma família.

Ressalte-se que a responsabilidade civil no Direito de Família é subjetiva, exigindo para sua configuração juízo de censura do agente capaz de entender a ilicitude de sua conduta. Também é preciso demonstrar o nexo de causalidade entre o agir com dolo ou culpa e o dano, que deve ser certo, presente ou futuro e próprio, podendo atingir o patrimônio material ou moral.

Nas relações familiares algumas situações podem ensejar danos morais ou materiais, dentre elas,

[…] as sevícias, as ofensas morais e físicas, as injúrias graves praticadas por um cônjuge contra o outro, a transmissão e contágio de doenças graves, às vezes letais, o abandono material e moral do companheiro, o abandono material e moral do pai pelo filho, a recusa no reconhecimento da paternidade, a negação de alimentos, a difamação, perecimento, extinção ou ocultação de bens a partilhar, são alguns exemplos dessa seara.[1]

 

Assim, seria possível a aplicação da responsabilidade civil tanto nas relações conjugais como nas relações paterno-filiais.

No que toca à incidência da responsabilidade civil sobre as relações conjugais, diverge a doutrina sobre as situações que permitiriam de fato direito à indenização.

Neste sentido, há quem sustente a possibilidade de ocorrência de dano moral apenas em face do descumprimento dos deveres conjugais previstos no art. 1.566 do Código Civil.[2]

Trata-se de posicionamento polemico, pois alguns dos deveres arrolados no art. 1.566 são hoje seriamente questionados, como é o caso do dever de fidelidade.

Por outro lado, parte da doutrina defende, de maneira mais acertada, a possibilidade de dano moral somente “nas hipóteses que se enquadrem na teoria geral da responsabilidade civil, não havendo vinculação direta com o descumprimento dos deveres conjugais.”[3] Assim, seria necessário verificar apenas a existência de dano existencial a ser tutelado.

No que tange às relações paterno-filiais, destaca-se a aplicação da responsabilidade civil como possibilidade de sanção para o descumprimento da obrigação parental de cuidado e convivência com relação aos filhos.

Em 2012 a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu pela possibilidade de responsabilização por dano moral em caso de descumprimento do dever de convivência, criando, assim, um importante precedente para essa temática no direito brasileiro. Com esta decisão, o STJ reconhece nessa situação específica de inadimplemento os elementos suficientes a caracterizar a responsabilidade civil, mesmo pela doutrina mais tradicional, quais sejam um agente (responsável pela violação), um ilícito (o descumprimento de um dever jurídico), um prejuízo e o nexo causal e, por consequência, o dever de indenizar.

Assim, entendeu-se pela existência de um dever jurídico imposto aos pais de cuidado e convivência com relação aos seus filhos. Como todo dever jurídico, o seu descumprimento gera repercussões no mundo do direito, sob pena de esvaziamento de seu conteúdo normativo.

Percebe-se, pois, que a aplicação da responsabilidade civil no direito de família é uma resposta importante para o descumprimento dos deveres juridicamente tutelados, configurando, muitas vezes, a única sanção possível para violação das normas que permeiam algumas relações familiares.


NOTAS

[1] MIGUEL, Alexandre. A responsabilidade civil no novo Código Civil: algumas considerações. In: NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson (Org.). Responsabilidade civil: teoria geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 1, cap. 17, p. 491.

[2] Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e consideração mútuos.

[3] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; ORLEANS, Helen Cristina Leite de. Responsabilidade civil nas relações familiares. Revista Brasileira de Direito de Família e Sucessões (out/nov 2007). Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2007, p. 107.


 

 

REFERÊNCIAS.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; ORLEANS, Helen Cristina Leite de. Responsabilidade civil nas relações familiares. Revista Brasileira de Direito de Família e Sucessões (out/nov 2007). Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2007.

MIGUEL, Alexandre. A responsabilidade civil no novo Código Civil: algumas considerações. In: NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson (Org.). Responsabilidade civil: teoria geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 1, cap. 17.

[1] MIGUEL, Alexandre. A responsabilidade civil no novo Código Civil: algumas considerações. In: NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson (Org.). Responsabilidade civil: teoria geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 1, cap. 17, p. 491.

[2] Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e consideração mútuos.

[3] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; ORLEANS, Helen Cristina Leite de. Responsabilidade civil nas relações familiares. Revista Brasileira de Direito de Família e Sucessões (out/nov 2007). Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2007, p. 107.