A adoção é medida excepcional e irrevogável, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990). Contudo, a determinação, que visa principalmente a proteção integral e o melhor interesse dos mais jovens, por vezes pode entrar em conflito com esses princípios. Na última semana, o Superior Tribunal de Justiça – STJ abandonou o rigor e o formalismo legal, com uma interpretação principiológica da norma para privilegiar o bem-estar de um adolescente.
Para a ministra Nancy Andrighi, a interpretação sistemática e teleológica do artigo 39 do ECA, que trata da irrevogabilidade da adoção, leva à conclusão de que a norma, na verdade, pode ser afastada ao se verificar que a manutenção da medida não apresenta mais vantagens para o adotado. O objetivo deve ser sempre a garantia dos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente.
Com esse entendimento, a 3ª Turma do STJ decidiu sobre o caso de um adolescente que se arrependeu do processo e fugiu do convívio com a nova família. Deu-se provimento ao Recurso Especial – REsp 1.892.782, ajuizado por pais adotivos para rescindir a sentença de adoção e determinar a retificação do registro civil do jovem para que volte a constar o nome anteriormente usado por ele.
Flexibilização das regras do ECA
O juiz Fernando Moreira, vice-presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, comenta: “Trata-se de uma decisão na vanguarda na tutela dos direitos da criança e do adolescente, o que demonstra que nenhuma regra é absoluta, devendo ser cotejada com as outras regras e princípios do nosso ordenamento jurídico”.
Para ele, o entendimento apresentado se enquadra na perspectiva de flexibilização das regras rígidas do ECA por meio dos seus próprios princípios norteadores: melhor interesse da criança e do adolescente, proteção integral, reais vantagens da adoção e outros decorrentes do princípio da prioridade absoluta, previsto no artigo 227 da Constituição Federal.
Casos excepcionais
Segundo o especialista, há outros casos a irrevogabilidade da adoção costuma ser afastada. “O STJ já autorizou a rescisão do julgado em uma situação em que o pai biológico faleceu e, na sequência, foi realizada a adoção unilateral – aquela feita pelo cônjuge ou companheiro em relação ao filho do outro”, recorda Fernando.
“Após o período de um ano da adoção, o adotado deixou de conviver com o seu pai adotivo e não manteve mais qualquer contato, passando a conviver exclusivamente com a sua família biológica paterna, com a qual mantinha grandes laços afetivos (REsp 1545959/SC)”, acrescenta o juiz.
Apesar de excepcional, a medida também poderia ser permitida em outros casos hipotéticos. “Também se poderia visualizar igual solução na hipótese de devolução da criança pela família adotiva, após o trânsito em julgado da sentença, em razão da descoberta de fatos posteriores à sentença ou da ausência de consolidação de vínculos afetivos”.
Direito não pode ficar alheio às situações da vida, diz especialista
Na análise do caso em tela, a ministra Nancy Andrighi sustentou que não se trata de estimular a revogabilidade das adoções. Em certas situações, como a demonstrada, nem sempre as presunções estabelecidas dogmaticamente suportam o crivo da realidade, nas palavras da ministra. “Em caráter excepcional, é dado ao julgador demover entraves legais à plena aplicação do direito e à tutela da dignidade da pessoa humana. A realidade se impõe”, concluiu a magistrada.
Segundo Fernando Moreira, o objetivo da regra da irrevogabilidade da adoção, conforme o artigo 39, §1º, do ECA, é proteger os interesses da pessoa adotada, evitando a insegurança jurídica causada pela possibilidade de retorno da criança ou do adolescente à situação anterior à adoção. Contudo, na prática, nem ela é absoluta.
“As razões que nos levam a escolhas, hoje, podem desaparecer amanhã. O que era amor vira desamor. O que era imaginação vira realidade. Nem mesmo a lei consegue impor a imutabilidade das relações afetivas, por mais que seja realizada uma boa preparação dos adotantes e dos adotandos”, reflete o diretor nacional do IBDFAM.
Ele conclui: “Assim, a depender do caso concreto, entendo as razões dos pais que devolvem os filhos após o trânsito em julgado da adoção, assim como entendo os filhos adotivos que, após manifestarem o seu desejo na adoção, desistem da sua escolha e seguem em busca de sua felicidade pessoal. O Direito não pode ficar alheio às situações da vida de relações”.
Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM (com informações do STJ)