A viúva de uma mulher transgênero deve receber pensão vitalícia por morte pelo Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS. A autora da ação alegou que a esposa deu início ao processo de transição de gênero no curso do casamento, sendo averbado o novo nome na certidão de casamento e também na certidão de óbito.

O INSS havia negado o benefício sob o argumento de que não havia comprovação da manutenção da sociedade conjugal, havendo indícios de que o casal estivesse separado de fato na época do falecimento da segurada. A decisão, contrária ao entendimento do Instituto, é da Justiça Federal do Rio de Janeiro – JFRJ.

A juíza federal Márcia Maria Nunes de Barros, da 13ª Vara Federal do Rio de Janeiro, observou a comprovação de que não houve rompimento da sociedade conjugal. Também restou clara a relação de dependência econômica entre a autora e a segurada, requisito exigido por lei para a concessão do benefício.

Liberdade e diversidade sexual

De acordo com a análise, a transição de gênero não interferiu na relação entre elas. A magistrada ressaltou o valor da liberdade como direito fundamental e o respeito à diversidade sexual, previstos pela Constituição Federal. “O respeito à identidade de gênero e à orientação sexual são aspectos fundamentais para a afirmação da dignidade humana, não se podendo aceitar, juridicamente, que preconceitos gerem restrições de direitos”, frisou.

“Tratamento diferenciado a uma pessoa em virtude de sua condição de pessoa cisgenêro ou transgênero ou de orientação sexual constitui hipótese odiosa de discriminação sexual, vedada pela Constituição Federal, constituindo, ademais, ofensa ao princípio da igualdade”, prosseguiu Márcia.

Por fim, a juíza lembrou que a transexualidade, antes entendida como “transtorno de identidade de gênero”, não é mais classificada como doença mental pela Organização Mundial da Saúde – OMS, sendo agora classificada como “incongruência de gênero” no novo capítulo intitulado “condições relacionadas à saúde sexual”.

Dignidade da pessoa humana

A decisão foi comentada por Társis Nametala Sarlo Jorge, procurador federal do Rio de Janeiro, em seu perfis no Instagram (@tarsisdisarlo) e Telegram (Previdência Total). Em entrevista ao Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, o especialista avalia que a decisão “prestigiou o princípio da autonomia privada, da autodeterminação, um dos elementos da arquitetura mais ampla da dignidade da pessoa humana”.

Ele acrescenta: “Por outro lado, não parece legítimo que a autarquia possa socorrer-se de uma presunção que não esteja prevista em lei. Com efeito, o fato de ter havido redesignação sexual de um dos cônjuges não importa, automaticamente, a quebra do vínculo conjugal. Por isto, nos termos em que está noticiada (pelo JFRJ), concordo com a decisão judicial”.

Transexualidade no Direito Previdenciário

Na visão do procurador federal, o Direito Previdenciário ainda não está plenamente preparado para enfrentar a questão da identidade de gênero. O tema foi destacado por Tarsis Nametala em palestra que proferida no Congresso do IBDFAM em 2017, com base em sua obra Direitos Humanos, Direito de Família, Sucessões e Previdência Social – Temas Controversos, lançado pela Editora Instituto Memória.

“Tratei da questão da transexualidade e a aposentadoria por gênero e pensão por morte. Ali tentei trazer algumas soluções para situações não previstas pela lei, como contagem proporcional de tempo de contribuição. No entanto, o legislador ainda não tomou nenhuma atitude concreta nesta direção e a jurisprudência ainda é rarefeita”, ressalta Tarsis.

O especialista frisa que a decisão contribui para a garantia da dignidade da pessoa transgênero no ordenamento jurídico, ainda que a beneficiária tenha sido sua esposa cisgênero. “Qualquer forma de preconceito jurídico conta o transgênero viola não somente sua esfera de direitos, mas, muitas vezes, de cisgêneros que com ele possuem relações de afeto e jurídicas.”

“É preciso entender que a violação a um direito, em última análise, pode representar uma violação a todos os direitos. A decisão em apreço, ao reconhecer o direito à pensão por morte da mulher cisgênera faz respeitar os direitos do transgênero ainda que por via indireta, pois lhe assegura que não precisa temer assumir sua real identidade sexual sob pena de perda de direito de pessoas que lhes são queridas. Aliás, este foi o mote que defendemos também em nosso livro, já citado”, conclui Tarsis.